Stablecoins estão a transformar o futuro da liquidação financeira antes que os reguladores consigam redigir o primeiro parágrafo das normas.
O anúncio da parceria entre Matera e Circle pode parecer apenas mais uma inovação no universo das fintechs, mas guarda em si uma mutação profunda do sistema financeiro brasileiro — e, possivelmente, latino-americano. Ao integrar o USDC a contas bancárias locais com a fluidez do PIX e sem a mordida do IOF, abre-se um novo canal de circulação monetária onde o dólar digital passa a ter cidadania nacional, com residência tributária difusa.
A operação é engenhosa: aproveita a robustez regulatória da Matera e a reputação global da Circle para oferecer liquidação instantânea entre moedas fortes, sem fricção ou custos inflacionados por intermediários. Mas essa engenharia financeira, tão elegante quanto eficiente, escapa das rotas convencionais de vigilância tributária. A promessa de liquidez sem IOF é sedutora, mas esconde uma armadilha institucional: a norma ainda não chegou — e talvez nem venha.
“Quem controla o dinheiro, controla o tempo.”
Yuval Noah Harari
A reação eufórica do mercado, com ações da Circle disparando, revela quem sai na frente: os detentores de ativos e os emissores de tecnologia. Já o Estado — que historicamente regula depois de perder — ainda avalia se isso é uma inovação fiscal benéfica ou uma erosão do seu poder arrecadatório. Porque o real pode ter estabilidade, mas não tem fôlego para concorrer com um dólar digital que se movimenta à velocidade do PIX, sem impostos e sem fronteiras.
A antítese está na própria sofisticação da solução: ao se alinhar a padrões internacionais e manter relatórios transparentes, o USDC pode ajudar a bancarizar setores ainda à margem da globalização monetária, como cooperativas e bancos locais, permitindo inclusão cambial em larga escala. É a tecnologia trabalhando a favor da descentralização e da eficiência.
Mas eficiência sem vigilância não é virtude — é risco. O vácuo regulatório abre espaço para arbitragem cambial, evasão fiscal e insegurança jurídica. O desafio não está no que foi construído, mas no que ainda falta: um marco regulatório claro, ágil e compatível com a velocidade da tecnologia.
O Brasil pode tornar-se pioneiro global na integração de stablecoins ao sistema financeiro formal. Mas para isso precisa decidir — e logo — se essa transformação será feita de forma soberana ou apenas como reação tardia a plataformas que já funcionam como bancos centrais privados. A moeda não dorme. A regulação também não deveria.

Coin Telegraph | 11.jun.2025
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