Sobre o medo do erro e a fuga da certeza


Vivemos a era do palpite sem risco. Queremos parecer atentos, mas sem a responsabilidade de estarmos certos ou errados. Os noticiários giram em torno de análises que nada dizem com absoluta convicção. As redes sociais são dominadas por diagnósticos generalistas e sentenças cautelosas. Os políticos, quando questionados, se escondem atrás de frases maleáveis como “É preciso discutir melhor este tema” ou “Estamos atentos às movimentações.”

“A dúvida não é uma condição agradável, mas a certeza é absurda.”

Voltaire


O medo da certeza é, paradoxalmente, filho de uma era obcecada por dados e previsibilidade. Nunca se falou tanto em algoritmos que antecipam tendências, análises preditivas e inteligência artificial capaz de “decifrar” padrões humanos. No entanto, nunca estivemos tão relutantes em dizer algo com firmeza. Desacostumamo-nos à falibilidade. E num mundo onde errar pode custar caro – reputações destruídas em segundos, cancelamentos instantâneos –, aprendemos a nos refugiar na imprecisão.

O “isto houve qualquer coisa” não é apenas um cacoete verbal; é uma estratégia de sobrevivência. Ele nos permite expressar a sensação de que algo aconteceu sem nos comprometer com um diagnóstico. Mas o que acontece quando essa cautela se espalha para além do trânsito? Quando se instala na cultura, na política, no pensamento coletivo?

A resposta é uma sociedade que hesita. Que reage com reticências quando deveria usar pontos finais. Que evita conclusões para não correr o risco de errar. Mas é possível viver assim? A dúvida pode ser um motor do pensamento crítico, mas a hesitação permanente é um veneno. A incerteza constante não liberta – ela paralisa.

No fim das contas, Voltaire estava certo: a dúvida pode ser incômoda, mas a certeza absoluta pode ser absurda. Ainda assim, entre os extremos da hesitação e da arrogância, há um espaço perdido: o da coragem de errar. A coragem de pensar com convicção, sabendo que pode estar enganado. E talvez seja esse o grande desafio do nosso tempo: redescobrir a possibilidade do erro como parte essencial da busca pelo acerto.


O trânsito para. Alguém olha para a frente e solta uma frase que, de tão vaga, se tornou onipresente: “Isto houve qualquer coisa.” Miguel Esteves Cardoso, com a ironia habitual, desmonta essa expressão como um sintoma de um tempo que hesita em nomear, em concluir, em afirmar com certeza. Mas se olharmos com atenção, essa hesitação não está apenas no trânsito: ela é a marca de uma sociedade inteira.



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