Niède Guidon não descobriu um sítio arqueológico. Descobriu o Brasil. Não aquele do hino, das capitais ou das fronteiras oficiais — mas o Brasil mais profundo, anterior ao verbo, ao mapa, à colonização. Um Brasil de fogueiras acesas há 50 milênios, de mãos humanas desenhadas em pedra, de silêncios que contam histórias.
Guidon não queria aplausos. Preferia provas. Queria argumentos, rochas, fragmentos de carvão, pontas de flecha que pudessem convencer um mundo cético de que as Américas eram mais antigas do que os manuais diziam. Dizia com firmeza e serenidade: estamos aqui há muito mais tempo do que pensávamos. E isso muda tudo.
Niède enfrentou um continente inteiro de burocracia e descrédito. Mulheres como ela, vindas de fora, com ideias disruptivas, não são bem-vindas nos corredores do poder. Mas foi em São Raimundo Nonato, no sul do Piauí, que ela fincou sua bandeira — não a de uma nação, mas a do conhecimento. A cada pincelada sobre a terra, ela cavava também uma ética: a de ouvir os vestígios, de respeitar os que vieram antes, de não abandonar a história à própria sorte.
Seu trabalho não foi apenas científico, foi um gesto de resistência contra a cronologia colonial da história.
Sua morte não é o fim. É uma dobra no tempo. O que ela deixou é mais que legado: é horizonte. A Serra da Capivara, onde liderou descobertas que redesenharam o entendimento do povoamento das Américas, tornou-se altar de pedra da nossa ancestralidade.
Fundadora do Museu do Homem Americano, construtora de pontes entre o sertão e o mundo, Niéde não foi apenas uma cientista. Foi um sismógrafo da memória.
Num país que muitas vezes desdenha suas origens e despreza seus sábios, ela foi exceção. Foi a insistência generosa do saber. Uma mulher que andou séculos para trás para que nós pudéssemos avançar com alguma dignidade.
Niède Guidon morreu como viveu: de frente para o passado, com o olhar voltado ao porvir. Sua ausência agora nos pesa como um eco que ainda ressoa nas paredes vermelhas da Capivara. Que saibamos escutá-lo.
Talvez, no fim, Niéde Guidon tenha escavado mais do que sítios arqueológicos. Escavou a alma de um país distraído. E, ao fazê-lo, deixou gravado em pedra um aviso: só saberemos quem somos quando cuidarmos de onde viemos.
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