Até sempre, Zé Pinho

Passei o último mês a escrever artigos sobre heróis que morreram. Hoje escrevo um sobre outro herói que, sobretudo, era meu amigo e também faleceu. O José Pinho, fundador da Livraria de Fundos, sonhador da Ler Devagar, criador de 1000 bibliotecas, morreu. Guardava em si o mesmo fascínio da Tabacaria de Pessoa: nele cabiam todos os sonhos do mundo.

Entre amigos, todos nós dizíamos que o Zé era maluco, capaz de aceitar todos os projetos, acreditando sempre que o impossível era possível. E era. Não tinha material genético para dizer não a qualquer boa ideia que lhe aparecesse.

Trabalhei com o Zé durante muitos anos e foi na criação do Fólio em Óbidos, em 2015, onde era diretor de comunicação, que o conheci. O Zé era o parceiro da Câmara Municipal, que, com a Celeste Afonso, então vereadora da cultura, e o presidente da câmara, tinham a missão de construir na cidade medieval um festival literário.

Óbidos medieval, em si própria, era uma obra de ficção criada pelo António Ferro nos tempos da outra senhora, ajudando a construir a narrativa de um Portugal antigo, medieval, onde a mudança era algo sempre inconveniente.

O José Pinho era a antítese dos paradigmas salazaristas. Imprevisível por natureza, insaciável por opção e inseparável dos livros por desígnio. Talvez bacante, talvez insano, mas com certeza divino.

O Folio tinha 4 capítulos: Folio Autores, Folio Educa, Folio Ilustra e um capítulo que abrangia tudo o que o José Pinho acreditava, o “Fólio mais”. A confusão que ele gerava nos outros curadores, e que nos deixava à beira de um ataque de nervos, foi o que tornou o Folio, provavelmente, o melhor festival literário português e talvez o melhor em língua portuguesa.

Fumante de todos os tabacos, bebedor de todos os licores, um dia, na Toca do Velhaco, um café à entrada de Óbidos, onde o Zé matava as irritações que tinha com a organização — ao mesmo tempo que ressuscitava todas as alegrias do mundo, disse-me assim: “O que é preciso é fazer, o resto não interessa, o que é preciso fazer”.

Trabalhamos no Folio por 3 anos, em condições diferentes, com financiamentos diferentes e relacionamentos diferentes, mas sempre com a mesma alegria. Depois fui viver para o Brasil e encontrei-o menos vezes. Até que nos dois últimos anos, por conta dos projetos culturais que tenho feito, a vida me aproximou novamente da literatura e, claro, do José Pinho.

A última vez que o encontrei foi no Espaço Talante, uma sala de exposições e eventos no primeiro andar da livraria Ler Devagar, no LX Factory em Lisboa, entregue ao ator, pensador e grande amigo brasileiro António Grassi.

Tiramos uma fotografia, uma selfie, olhando os três para cima. Foi a primeira fotografia que tirei com o António e a última que tirei com o Zé, foi no mês passado e não a quis publicar em lado nenhum. Talvez porque ela me fizesse lembrar o que sinto hoje. E não queria.

E hoje soube que tu morreste”, disse-nos o Afonso Borges no grupo “Literatura e Liberdade” onde, no WhatsApp, gente como nós fala do passado e do futuro como se não existisse amanhã.

Tu estás no amanhã eterno. Já sabes como é, ponto. Mas a m**** toda é que tu foste mesmo embora e nós precisávamos de mais três vidas para pôr a escrita em dia, visitar o teu centro cultural novo que hás-de inaugurar no paraíso.

Agora, o mais justo é que todas as ruas do mundo, durante um tempo, se chamem José Pinho. E que daí para a frente, só possas viver nos nossos corações.


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