Há festivais que se limitam a ocupar uma data no calendário; outros, mais raros, mudam a respiração de uma cidade. Mesmo de uma grande, como é João Pessoa.

O FliParaíba pertence a essa segunda família. Talvez porque tenha entendido que literatura não é apenas reunião de autores, mas um acontecimento simbólico — um pacto silencioso entre quem escreve, quem lê e quem deseja pensar o país para além das urgências imediatas. No Centro Cultural São Francisco, entre conversas, ruídos e silêncios, ficou evidente que o festival não é um evento: é um território em construção.

A arquitetura curatorial, que desenhei, partiu de um princípio simples e exigente: não basta diversidade, é preciso coerência. Escolhemos autores não para preencher quotas, mas para tensionar temas — ancestralidade, identidade, democracia — a partir de geografias distintas. A diversidade verdadeira não está na variedade dos nomes, mas na fricção criativa entre eles. Da Paraíba a Portugal, do Brasil profundo às literaturas africanas de língua portuguesa, cada voz trouxe um modo diferente de escutar o mundo. E foi nesse choque de ritmos, tempos e imaginários que o festival encontrou a sua força política.

A ancestralidade, tratada muitas vezes como palavra ritualística, revelou aqui a sua dimensão prática. Ela só existe quando se transforma em ação: quando aproxima escolas das suas próprias histórias, quando devolve às comunidades tradicionais o lugar central que sempre lhes pertenceu, quando dá à leitura o papel de continuidade e resistência. A ancestralidade é um convite a lembrar, mas também a reinventar; é ponte e raiz ao mesmo tempo. O festival mostrou que essa ponte continua viva — e que pode, sim, orientar políticas culturais concretas.

Outro gesto decisivo foi a aproximação entre autores de continentes diferentes. Não buscamos conciliação artificial nem confronto programado. O que se produziu foi algo mais profundo: modos novos de ler o mundo. Há encontros que alargam a imaginação; há frases que viajam entre oceanos e regressam diferentes; há diálogos que desmontam a ideia de que pertencemos a territórios fixos. Quando o Brasil, Portugal e África se sentam à mesma mesa, algo se desloca — e a língua revela a sua potência de futuro.

Num tempo de velocidade digital, o festival assumiu um risco quase radical: devolver importância ao silêncio. Criar intervalos, abrir espaço para a escuta, desacelerar a respiração. A literatura precisa desse gesto, porque o pensamento profundo não nasce em timeline; nasce quando alguém detém o passo e olha a frase como quem olha para dentro. Não se trata de nostalgia analógica, mas de recuperar a humanidade do encontro. A tecnologia acelera; a literatura afina.

Ficou claro também que um festival literário pode criar novas rotas de circulação cultural. Quando colocamos vozes historicamente excluídas no centro do palco — indígenas, quilombolas, periféricas, africanas, nordestinas — não estamos apenas dando visibilidade; estamos redesenhando a cartografia cultural. Inclusão não é um gesto de boa vontade: é um processo de redistribuição de poder simbólico. O FliParaíba assumiu essa tarefa e mostrou que a língua portuguesa, com toda a sua herança colonial, pode ser também instrumento de reparação e imaginação.

Essa herança, aliás, foi enfrentada com seriedade. Não escondemos feridas nem romantizamos o passado. A língua que nos une é a mesma que nos feriu; é ponte e cicatriz. A força do festival foi assumir essa dualidade como matéria criativa: dar espaço para o desconforto, para a crítica, para a reinvenção. A literatura não repara sozinha, mas pode abrir caminhos onde a política ainda hesita.
No encontro entre saber académico, cultura popular e oralidade, a democracia apareceu em sua forma mais nobre: como pluralidade de escutas. Um país só se reconhece quando reconhece as suas vozes. E a Paraíba, nesses dias, ampliou a própria voz.

O balanço final é claro: o FliParaíba cresceu, consolidou-se e abriu portas para 2026. Ajustaremos o que precisa ser ajustado — logística, fluxos, moderação, intervalos — porque a ambição agora é maior: transformar o festival num encontro de três dias, mais vivo, mais profundo e mais aberto ao Brasil e ao mundo lusófono.

O que se viu em João Pessoa não foi apenas literatura. Foi a prova de que a língua continua a ser o nosso maior instrumento de futuro — e que, quando a tratamos como território, ela devolve país, memória e promessa.

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