Se, uma vez, num festival, seis palavras ao acaso

Há histórias que não começam num lugar, mas num vocábulo. Não têm personagens, têm respirações que se condensam numa única palavra — e essa palavra, quando dita, cria o corpo que a carrega.

Eles viajam sem destino nenhum. Não por desorientação, mas por liberdade. O destino, para eles, seria uma espécie de muro — demasiado sólido, demasiado definitivo. Preferem o movimento nu, sem garantia. Seguem o rasto de sombras, o rumor das estradas, a vibração das coisas pequenas.

Às vezes encontram cidades, às vezes apenas vento. De cada encontro, extraem uma palavra — e é essa palavra que lhes confere existência.

Há quem diga que estas figuras errantes não passam de eco, que não são escritores, mas páginas por escrever. Talvez seja verdade. Mas há quem veja mais longe e perceba que cada um carrega a própria língua como quem carrega um mistério: Transa, Suculenta, Fúria, Silêncio, Perpétuo, Vaidade. São palavras, mas também são destinos que se recusam a sê-lo.

Seguimos brevemente essas presenças anónimas enquanto caminham por um mundo que não lhes exige identidade, apenas passo.

Transa

O primeiro caminhante nunca disse quem era. Apenas carregava consigo a palavra que o designava: Transa. Uma palavra de corpo, mas também de travessia. Ele andava pelo mundo como quem toca e se deixa tocar, sem destino, sem promessa. Os outros — que ainda não tinham surgido — diriam um dia que Transa era aquele que entregava o próprio passo ao acaso. Ele não procurava amor nem destino; apenas atravessava. E bastava. A palavra era mais vasta do que a vida que ele tinha.

Suculenta

Quando encontraram uma planta persistindo no meio da poeira — ninguém explicou como — surgiu Suculenta, a caminhante que não precisava de nome, porque a palavra lhe moldava o andar. Ela tocou a folha espessa como quem reconhece um parente perdido. Suculenta vivia de quase nada: migalhas de sombra, restos de chuva, silêncio endurecido. Seu corpo parecia guardar a umidade que o mundo lhe negava. Era a mais silenciosa dos três, e talvez a que melhor compreendia o ato de seguir sem mapa: guardar água dentro de si para que a sede não a quebrasse.

Fúria

O vento engrossou, o céu ferveu, e então apareceu Fúria, o caminhante que avançava contra tudo: poeira, medo, hesitação. Fúria não falava; cuspia gestos. Para ele, essa era a palavra mais bela — não por violência, mas por movimento. Fúria acreditava que só segue quem rasga. Não era raiva, era impulso. A cólera que mantém o corpo vivo quando o mundo tenta pará-lo. O seu anonimato era absoluto: ninguém queria saber quem ele fora; bastava vê-lo partir para entender que nenhum nome o caberia.

Silêncio

Depois da tempestade, quando encontraram abrigo numa casa rachada, surgiu Silêncio. Não caminhava: pairava. O mundo parecia suspender-se ao seu redor, como se todo som desistisse. Silêncio era a palavra mais bela porque nenhuma outra dizia tanto com tão pouco. Para uns era ausência; para Silêncio, era plenitude. Ele caminhava com passos que não aconteciam, e os outros — Transa, Suculenta, Fúria — sabiam que sua presença era necessária como a página em branco onde o resto seria escrito.

Perpétuo

Numa cidade onde o tempo se recusava a mover-se, eles encontraram Perpétuo sentado numa escadaria gasta. Não envelhecia, não apressava, não lembrava. Perpétuo era a própria armadilha da duração. A palavra mais bela para ele era aquela que não terminava — e, por isso, nunca começava de novo. Perpétuo viajava sem destino não porque procurava algo, mas porque não sabia sair de si. Era o viajante mais cansado: carregava a eternidade como quem leva uma pedra no bolso. E, ainda assim, continuava.

Vaidade

Por fim, diante de um mar que parecia não ter passado nem futuro, surgiu Vaidade. Não tinha rosto definido: mudava conforme a luz. Vaidade sabia que nenhum caminhante era puro. Viajar sem destino era um gesto de ambição secreta — não para ser encontrado, mas para ser lembrado pelo mundo que jamais o conheceu. Vaidade era o espelho onde cada um se via por um segundo e fingia não ter visto nada. Mas era também impulso: a centelha íntima que faz avançar quando tudo parece inútil.

Depois

Ainda eguiram juntos por algum tempo — Transa, Suculenta, Fúria, Silêncio, Perpétuo, Vaidade —, cada um anónimo até de si mesmo, cada qual acreditando que sua palavra era a mais bela. Viajaram sem destino porque o destino exige identidade, e identidade é sempre a primeira prisão.

O mundo não precisava deles.
Eles também não precisavam do mundo.
Apenas caminhavam, cada qual carregando o peso e a leveza da palavra que era.

E nenhum leitor, ao encontrá-los, pôde dizer que os conhecia.
Porque eles eram apenas isso:
palavras que andam.


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