Sete noites cabem num corpo como sete nomes não ditos. A pessoa chega com uma mala pequena, um espelho de bolso, dois frascos de perfume — um cítrico, outro amadeirado — e a certeza inédita de que, pela primeira vez, vai dormir uma semana inteira na mesma cama. O colchão range como um barco amarrado. O quarto tem paredes de cal, uma janela que dá para o quintal e um lençol com uma mancha muito antiga em forma de mapa. A mala fica aberta, esperando que alguém escolha um continente.
Noite 1 – Chegada
O corpo deita-se de lado, depois de barriga para cima, depois de bruços, como quem procura a palavra certa para dizer água. O cabelo — muito curto para trançar, longo demais para esconder — espeta no travesseiro como grama depois da chuva. A pessoa pensa: “Se eu ficar imóvel, talvez a gravidade decida por mim.” Do outro lado da janela, um gato salta o muro e desaparece. O quarto respira uma paz que assusta, como se o silêncio fosse uma pergunta. A pessoa adormece com o perfume cítrico no pulso esquerdo e o amadeirado no direito, braços abertos, cada mão agarrada a um possível.
Noite 2 – A gaveta
Passa o dia a aprender os ruídos do lugar: a torneira que range antes de ceder, o vizinho que fala sozinho, a árvore que bate nas telhas quando o vento muda. À tarde, encontra um caderno no fundo da gaveta do criado-mudo. Na primeira página, uma frase escrita por alguém que já não mora ali: “O que não tem nome, ainda existe.” A pessoa sublinha com uma caneta verde. Depois desenha duas silhuetas sobrepostas, como uma transparência mal alinhada. Ao anoitecer, dobra cuidadosamente a camisa que cheira a sabão de coco e a camiseta larga que serve de pijama. Experimenta ambas, uma sobre a outra, uma em vez da outra, e no fim dorme sem nenhuma, com a pele em estado de alfabeto.
Noite 3 – As vozes
Recebe uma mensagem curta: “Chegaste bem?” Responde: “Cheguei.” A mãe liga, a voz macia: “Filho?” A pessoa fica em silêncio. A mãe corrige sem pedir desculpa: “Perdão. Você está bem?” Conversam sobre coisas pequenas — o preço do tomate, o calor, o exame do tio. Depois a mãe diz: “Sonhei que você voltava para casa e o portão abria sozinho.” A pessoa sorri, promete visita. Ao desligar, a palavra “filho” fica na língua como uma semente. Não é ruim, mas também não floresce. Antes de dormir, volta ao caderno e escreve: “O corpo é a casa que eu herdei sem escritura.” O perfume amadeirado insiste no ar como uma lembrança do inverno.
Noite 4 – O espelho
Compra um espelho maior e encosta-o na parede, em frente à cama. Passa muito tempo olhando-se de costas, de frente, de perfil, com as mãos nos bolsos, com as mãos no peito. Aprende de novo a sua própria voz; diz “bom dia” para ver se a boca concorda. Tenta um nome neutro, depois outro curto, depois um nome longo que daria trabalho nos formulários. O espelho não dá respostas: apenas devolve um corpo que está ficando familiar, como uma rua que se percorre até saber as pedras por nome. À noite, a pessoa experimenta o truque de dormir no centro da cama, sem ocupar demais, sem ceder demais — uma equidistância. O colchão aceita.
Noite 5 – O corte
Vai a uma barbearia. No balcão há revistas velhas e um pote com caramelos. O barbeiro pergunta: “Raspado ou só aparar?” A pessoa diz: “Quero que apareça o rosto.” O barbeiro não entende a filosofia, mas entende a máquina. O cabelo cai em forma de cinzas leves, e sob o peso que vai embora surge uma testa que olha para o mundo com novidade. De tarde, compra um vestido simples num brechó e uma camisa branca numa loja de uniformes. Em casa, veste ambos diante do espelho, alternando, sobrepondo, rindo sozinha de uma asneira qualquer. A roupa não resolve; apenas amplia. A pessoa pendura as duas peças lado a lado, como bandeiras de países que ainda não existem.
À noite, um sonho: sete cadeiras numa sala vazia. Em cada cadeira, um nome que desfalece quando tocado. A pessoa desperta com o coração no corredor. Toma água. Abre a janela. O ar da madrugada cheira a laranja e ferrugem.
Noite 6 – O papel
No correio, chegou o envelope pardo do cartório com as instruções para a retificação. Falta apenas a assinatura final, o selo, a ida ao balcão amanhã. O nome escolhido está ali, impresso, maduro como fruta. A pessoa lê em voz alta e sente uma vibração que não vem do peito, mas de um lugar mais antigo que o peito. “É só um nome”, diria alguém. Não é: é a primeira pedra de uma casa nova. Pousa o envelope no criado-mudo, apaga a luz, volta a acender. O medo não é de errar; é de acertar e, ainda assim, ser tarde. A pessoa encosta a testa ao vidro da janela. A cidade dorme como um animal doméstico. Deita-se. Nessa noite, pela primeira vez, escolhe um lado da cama e fica.
Noite 7 – A travessia
O dia é um fio esticado. A pessoa toma banho, esfrega o corpo com cuidado de restaurador de quadros. Veste a camisa branca — mais por precisão do que por costume —, calça sapatos macios, prende um fio de cabelo rebelde. No bolso, o documento antigo ainda diz outra coisa. Na mão, o envelope pardo, pesado como um certo tipo de chuva. No cartório, a senha chama um número que parece data de aniversário. O atendente levanta os olhos: “Confere se está tudo certo?” A pessoa lê o nome devagar, sílaba por sílaba, como quem aprende a tocar um instrumento e de repente acerta a melodia. Assina. O atendente carimba, o carimbo é um pequeno trovão domesticado. “Parabéns”, diz ele, com a banalidade de quem entrega chaves todos os dias sem saber as casas que inaugura.
Na rua, o sol tem a sobriedade das coisas exatas. A pessoa compra um pão doce, senta num banco, morde com cuidado para não derramar açúcar na roupa. Liga para a mãe. “Mãe, posso te contar uma coisa?” A voz do outro lado prende o ar. “Pode.” A pessoa diz o nome. A mãe repete, primeiro como quem testa, depois como quem adota. “Está bonito”, ela diz, e há um tremor pequeno que não é tristeza. Antes de desligar, a mãe arrisca: “Filha…” E a palavra, agora, encontra terra.
Volta para o quarto antes do meio-dia. Abre a mala, guarda a camisa de uniforme, o vestido do brechó, o caderno da gaveta. Espalha os perfumes sobre a colcha. Abre ambos e cheira. O cítrico é manhã, o amadeirado é memória. A pessoa aproxima os pulsos e mistura os dois, sem culpa, como quem finalmente aprende que não precisa escolher entre mar e montanha para chamar isto de casa. Troca o lençol, estica bem os cantos, sacode o travesseiro até fazer um pequeno monte, uma colina particular.
Ao cair da tarde, escreve no caderno: “Durmo aqui há sete noites, mas quem deitou ontem não é quem deita hoje. Sou a mesma, mas com luz acesa por dentro.” Depois fecha, guarda na gaveta, apaga a luz do teto e acende a luminária. O quarto tem exatamente as mesmas coisas, porém elas ocupam novos lugares no mapa.
Deita-se no mesmo lado da cama que escolheu na véspera. A familiaridade não assusta. O corpo encontra o sulco recém-nascido do colchão, como se o mundo tivesse reservado, desde sempre, aquela medida exata. A respiração entra em ritmo. O som de um ônibus distante faz o papel de mar. A pessoa desliza para o sono. Antes de atravessá-lo, pensa no gato da primeira noite, no espelho, na palavra que achou terra, nos cheiros misturados. E, como quem fecha uma carta, diz o próprio nome em silêncio.
A semana termina sem fogos, mas com uma certeza que não pede plateia: ninguém precisa dormir em todas as camas do mundo para merecer um quarto. Às vezes basta uma cama, uma palavra, um gesto de assinatura. Às vezes basta uma semana para que um corpo encontre o seu pronome.
Na manhã seguinte, quando abre a janela e o quintal se acende, o quarto a reconhece de volta. No criado-mudo estão o documento novo e o perfume misturado. O mundo não mudou — mas ajustou ligeiramente o foco.
Ela sorri, e o sorriso é uma frase completa.
Assina no caderno, com letra firme: Helena.
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