A guerra entre BYD e Tesla esconde uma verdade incômoda: a mobilidade elétrica ainda é alimentada por extração desigual, trabalho invisível e silêncio cúmplice.
O duelo entre BYD e Tesla virou a narrativa favorita do jornalismo de negócios. De um lado, a companhia americana que tornou o carro elétrico objeto de desejo global. Do outro, a gigante chinesa que, em menos de uma década, saiu da periferia para se tornar líder de vendas e tecnologia. Mas, enquanto as manchetes celebram a ultrapassagem, os olhos do mundo continuam desviados da trilha de pegadas metálicas que sustenta essa corrida.
Não há nada contra os carros elétricos. Eles são parte de uma solução necessária. Mas a ausência de debate sobre as condições materiais dessa indústria nos condena a repetir velhos erros com nova maquiagem.
A matéria doFinancial Times apresenta o avanço da BYD como resultado de decisões acertadas de política industrial, verticalização da cadeia produtiva e domínio sobre chips, baterias e softwares. Também menciona a queda no custo médio dos carros, o que de fato é relevante para a democratização da mobilidade elétrica. No entanto, o que se cala — ou apenas sussurra — é o custo silencioso desse sucesso. Nenhuma palavra sobre as condições de trabalho nas minas de cobalto e lítio, sobre a pressão ambiental nas regiões de extração ou sobre o impacto social da concentração de produção em países sem proteção trabalhista robusta.
A transição energética virou mantra global. Mas que transição é essa que apenas desloca o centro do problema? Substituir motores a combustão por baterias de íons de lítio não basta se a lógica extrativista, desigual e opaca permanecer intacta. A inovação, tal como celebrada, continua assentada sobre a exploração invisível do Sul Global — da Bolívia à República Democrática do Congo, do Chile à Indonésia. O progresso verde torna-se cinza quando se esquece de quem cava o buraco.
“O progresso é a realização das utopias que convêm ao mercado.”
José Saramago
Há ainda outro silêncio gritante: o da obsolescência programada. À medida que carros elétricos se tornam bens de consumo massivo, a durabilidade e reciclabilidade das baterias permanecem sob suspeita. A ausência de regulamentações globais sobre descarte, reaproveitamento e tempo de vida útil cria um paradoxo: produz-se para poluir menos, mas com métodos que pouco se preocupam com o depois.
Os defensores do livre mercado celebram a concorrência entre BYD e Tesla como uma vitória da inovação. Os defensores do Estado forte apontam o modelo chinês como exemplo de soberania industrial. Ambos esquecem que o planeta não é neutro nessa equação. A natureza, diferentemente das startups, não pivotará seu modelo de negócio.
Nada disso é argumento contra os carros elétricos. Eles são, sim, parte de uma solução necessária. Mas a ausência de debate sobre as condições materiais dessa indústria nos condena a repetir velhos erros com nova maquiagem. Substituímos o petróleo pelo lítio, mas mantemos a mesma lógica colonial: matéria-prima barata, trabalho invisível, lucro concentrado, consumo acelerado.
Se quisermos, de fato, uma mobilidade sustentável, precisamos perguntar: quem está pagando o preço invisível da revolução elétrica? A resposta não está no showroom das montadoras nem nas manchetes triunfais. Está nos subterrâneos do mundo. E é ali que o futuro também precisa ser discutido.
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