Quando uma empresa compra milhões de livros, extrai-lhes o saber e depois os destrói, não está apenas treinando uma inteligência artificial — está reinventando a queima de bibliotecas para o século XXI.
Nos últimos dias, soubemos que a empresa norte-americana Anthropic, criadora da inteligência artificial Claude, comprou milhões de livros digitais. A operação, conduzida por um ex-chefe do Google Books, visava uma missão explícita: reunir “todos os livros do mundo” para treinar o modelo de IA.
“Lá onde se queimam livros, acabarão queimando pessoas.”
Heinrich Heine
A base textual foi usada, absorvida, processada — e depois destruída. Literalmente. Os arquivos foram apagados dos servidores, num gesto que a empresa classificou como medida de segurança, mas que para muitos soa como um apagamento deliberado das fontes.
Isso já aconteceu antes. Não com servidores, mas com fogo. Alexandria, Bagdá, Sarajevo. As grandes bibliotecas do mundo foram, ao longo da história, alvos de destruição como forma de dominação simbólica. A queima de livros nos regimes autoritários do século XX, não era apenas censura: era um modo de moldar o que pode ou não ser lembrado. A diferença é que agora a destruição não é ideológica — é corporativa. Não se elimina por medo do conteúdo, mas por ter já extraído seu valor e não querer deixar vestígios nem dividir os ganhos.
A IA treinada com esses textos retorna ao mundo como uma nova forma de conhecimento: rápida, acessível, fluente — mas sem origem, sem autoria, sem memória. E isso transforma a cultura em extração pura. Os livros deixam de ser obras e passam a ser dados. E os dados tornam-se produtos. A memória da humanidade vira matéria-prima num processo que apaga a responsabilidade, os direitos, os nomes.
Não é só o papel que desaparece. É a possibilidade de refazer os caminhos, verificar as fontes, entender a intenção do autor. Ao apagar os arquivos, a Anthropic retira da sociedade o direito à reconstrução, ao estudo comparativo, à crítica. O saber torna-se opaco, privatizado, blindado.
Declarar que o conhecimento já não pertence à humanidade, mas à máquina que o incorporou é um ato de desapropriação cultural a serviço de uma eficiência algorítmica controlada por empresas privadas.
A fogueira mudou de forma — mas continua acesa.
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