Delegar decisões discricionárias a máquinas rompe o contrato democrático. O entusiasmo com a eficiência algorítmica esquece que nem toda decisão pública é simples aplicação de regra. Há escolhas que exigem prudência, sentido de justiça e responsabilidade pessoal.
Quando a Administração transforma ponderação de valores em cálculo opaco, comete uma ciberdelegação de poder: a vontade do Estado dissolve-se num artefacto técnico sem rosto, sem biografia e — por que não foi eleito— sem responsabilidade política. Decidir não é apenas computar; é responder por consequências, motivar escolhas, abrir a decisão ao escrutínio do cidadão e do juiz.
“O poder que não se explica não é poder democrático.”
Nos atos vinculados, o automatismo é útil: se a lei fixa critérios objetivos e binários, a máquina reproduz o silogismo com precisão e reduz filas, custos e caprichos. Mas a vida administrativa é feita de cinzentos.
Concessões urbanísticas, priorização de cirurgias, classificação de risco social, atribuição de bolsas ou sanções disciplinares pedem mais do que correção formal: pedem razões públicas. A máquina não comparece em audiência, não suporta contraditório, não presta depoimento. Sem agente identificável, evapora-se a motivação e empobrece-se o direito de defesa. O resultado pode até ser eficiente; legítimo, porém, não é.
Há quem argumente que algoritmos reduzem vieses humanos. Mas o que não vemos não deixa de existir: o dado escolhido, o modelo adotado, o objetivo otimizado, tudo é uma política escondida na matemática.
A neutralidade técnica é ficção confortável. Sem documentação, trilha de auditoria e possibilidade real de revisão humana, o sistema transforma discricionariedade em oráculo. E oráculos não se justificam: impõem-se.
Isso não significa demonizar a tecnologia. Sistemas de apoio à decisão, sim; decisão sem humano, não. A fronteira é simples: quando há espaço legítimo para ponderação de valores, a última palavra deve ter nome e cargo. O algoritmo pode ordenar informações, projetar cenários, alertar para inconsistências e sugerir parâmetros. Cabe ao decisor assumir a razão final, assinar a motivação e expor-se ao controle. Sem essa “chave dupla”, corremos o risco de criar um Estado automático que decide sem responder.
A síntese é uma regra prática, fácil de ensinar e de fiscalizar: se a decisão precisa ser defendida perante um juiz ou um cidadão, ela precisa de autor humano. O resto é instrumento.
O futuro da Administração não está em substituir a prudência por código, mas em disciplinar o código para ampliar a prudência. Quando o algoritmo volta ao seu lugar — ferramenta robusta, transparente e auditável — a democracia respira. E o Direito, que sempre foi linguagem de razões, não perde a voz.
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