Silviano Santiago não mente — ele distorce com lucidez.
Enquanto o mundo se distrai entre simplificações histéricas e polarizações encenadas, um dos maiores autores vivos da língua portuguesa reaparece com um livro que sempre esteve à frente do seu tempo.
O falso mentiroso, agora relançado, é uma obra que, ao se recusar a escolher entre o que é fato e o que é ficção, denuncia a falência dessa própria escolha. Ao fazer isso, Silviano prova o que ninguém ousa dizer: não há diferença entre o que é lembrado e o que é inventado — só entre o que é vivido e o que é escrito.
A mentira é a forma mais sofisticada da verdade quando a realidade se esconde.
O romance, construído como um lipograma sem a vogal “e”, soa como se tivesse sido redigido pelo silêncio. Trata-se de uma técnica usada por George Perec nos anos 1960, que aqui se transforma em gesto político: eliminar a vogal mais usada da língua é um modo de exibir que toda construção é uma renúncia, toda narrativa, um ato de exclusão.
A ausência, mais do que a presença, é o que organiza a verdade da linguagem. Santiago sabia disso quando escolheu contar a história de Samuel, alter ego disfarçado de caricatura, espelho e paródia de si próprio. Mas quem, nos jornais, falou sobre isso? Quem apontou que, ao privar o texto de uma letra, o autor expõe como o discurso oficial também silencia o essencial?
Faltou um colunista que dissesse: essa obra não é só literatura — é denúncia. Que visse no romance um retrato da sociedade brasileira contemporânea, onde todo mundo finge dizer a verdade enquanto conta apenas o que convém. Faltou alguém que reconhecesse, como o próprio Santiago já o fez em ensaios, que a ficção é o único lugar onde podemos ser sinceros sem medo. Porque não se trata de inventar para enganar, mas de fabular para resistir. A ausência dessa leitura no noticiário revela algo mais profundo: o desprezo por obras que recusam os binarismos fáceis do presente.

No Brasil da mentira oficializada e da transparência encenada, reler O falso mentiroso é um ato de sobrevivência crítica. Há um gesto subversivo em dizer “posso estar mentindo, posso estar dizendo a verdade” logo na primeira página.
O narrador não quer enganar o leitor — quer libertá-lo da prisão da ingenuidade. E é exatamente aí que a obra se torna urgente: num tempo em que tudo precisa ser provado, autenticado, registrado e postado, Silviano Santiago escreve um livro onde o mais importante é o que escapa.
Se Eliane Brum tivesse escrito sobre isso, talvez nos lembrasse de que o território da memória é minado. Se Lobo Antunes o tivesse resenhado, provavelmente teria dito que o único modo de dizer a verdade é mentindo com estilo. Mas eles não estavam lá. Restou ao leitor atento preencher essa lacuna. Porque toda leitura que importa exige uma ausência anterior: a do discurso fácil.
E é aí que Silviano Santiago brilha — ao nos lembrar que a verdade não é uma linha reta entre o que se diz e o que se é, mas o vão entre as palavras.
Público | 19.07.25
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