Pistorius permanece no Ministério da Defesa como quem carrega uma herança incendiária. A Alemanha ergueu seu pós-guerra sobre a renúncia ao militarismo, mas hoje lidera, ao lado dos EUA, a corrida por armas e blindados destinados à Ucrânia.
A nomeação de Boris Pistorius, no governo do conservador Friedrich Merz, reforça a ideia de que o continente europeu vive uma viragem profunda — não apenas na política, mas na alma estratégica de sua civilização. A paz deixou de ser um dado adquirido e se transformou em projeto de força.
Desde a invasão russa de 2022, a Zeitenwende (literalmente, a viragem dos tempos) declarou a obsolescência de antigas doutrinas de contenção. O fundo extraterritorial de 100 mil milhões de euros para modernizar a Bundeswehr não é só uma resposta a Putin: é um marco da mutação europeia. A Alemanha, que por décadas hesitou diante de qualquer protagonismo bélico, assume agora o papel de potência defensiva, mesmo ao custo de abandonar o freio de dívida que limitava gastos militares.
Mas a pergunta incômoda paira no ar: armar-se para quê? A dissuasão, argumento clássico da Guerra Fria, regressa ao vocabulário comum — mas com outra geometria. Se antes os mísseis estavam apontados entre blocos antagônicos, hoje o temor é o deslizamento do mundo para a irrelevância da diplomacia. Merz justifica a mudança citando Trump, a Rússia e os ventos de desordem global. No entanto, não há clareza sobre onde termina a defesa e começa a escalada.
Essa é a armadilha dos futuros possíveis: ao tentar evitar o conflito, muitos o antecipam. A Alemanha, ao optar por Pistorius, sinaliza que não haverá volta atrás na sua nova doutrina. A política externa da paz pela economia — que durante décadas ancorou a estabilidade europeia — é substituída pela paz armada. Pode funcionar. Mas também pode ensinar à Europa que, ao abandonar seus próprios fantasmas, pode acabar convocando novos.

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