Democracia, esse músculo improvável

Há ideias que se impõem pelo prestígio, outras pela tradição. E há as que sobrevivem unicamente porque resistem — como músculos que, em vez de força, acumulam memória. A democracia é uma dessas. Não vive do consenso, mas da tensão. Não cresce sob aplausos, mas sob cerco. Não progride quando é adorada, mas quando é ferida e ainda assim não sangra.

Pode parecer estranho dizer isso, mas há países que ensinam mais sobre democracia quando a vivem no fio da navalha do que aqueles que a proclamam em mármore. É no Sul, e não no Norte, que a democracia hoje mostra seus dentes. Não como promessa, mas como reflexo: de séculos de insônia institucional, de décadas de pactos rasgados, de noites em que a esperança parecia uma ironia de salão.

“Toda ideia viva tem inimigos vivos.”

A força de uma ideia não se mede pelos slogans que ela produz, mas pelas estruturas que ela obriga a se erguerem em sua defesa. Quando uma república acossada escolhe não se ajoelhar, quando juízes recusam a mudez e impõem a lei contra a desordem, quando generais são chamados à razão pela Constituição e não pela caserna — então não estamos diante de um Estado; estamos diante de um enigma: como é que algo tão frágil ainda se sustenta?

A resposta talvez esteja fora dos livros. A democracia, em alguns lugares, deixou de ser uma teoria política. Virou sobrevivência. Já não vive no parlamento, mas no corpo social que se recusa a morrer. Já não se alimenta de ideais, mas de gestos concretos: julgar, nomear, limitar, punir, dizer não.

E por isso a sua força, hoje, é clandestina. Não se vê em palanques, mas nas entrelinhas dos despachos judiciais, nos silêncios que não se dobram às redes, nas estruturas que seguram o edifício mesmo quando ele parece prestes a desabar.

A democracia virou músculo. E é esse músculo — ferido, tensionado, mas ativo — que a mantém de pé onde todos juravam vê-la cair.


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