Inteligência artificial. Quando a Europa hesita, quem lucra?

A guerra da inteligência artificial não se vence apenas com algoritmos; vence-se com poder económico, infraestrutura e velocidade política. E, neste momento, enquanto a Europa afina parágrafos do AI Act, os Estados Unidos e a China avançam sem pedir licença. Não é coincidência: sempre que Bruxelas trava, alguém fora de Bruxelas acelera. A hesitação europeia não é neutra — tem beneficiários claros. E não são os cidadãos europeus.

O debate parece jurídico, cheio de nuances técnicas, consultas, comissários, negociações intergovernamentais. Mas basta um olhar para perceber a mecânica real: quem ganha quando a Europa demora a regular? A resposta é tão simples quanto desconfortável: as Big Tech americanas, os fabricantes asiáticos e todas as empresas que prosperam num ambiente onde a supervisão tarda e o lucro chega antes do escrutínio.

Enquanto a Europa discute exceções para modelos fundacionais, os gigantes do Vale do Silício expandem escala global.

É revelador: enquanto a Europa discute exceções para modelos fundacionais, os gigantes do Vale do Silício expandem escala global. Enquanto ministros europeus se reúnem para definir “obrigações proporcionais”, as big techs consolidam mercados, refinam modelos, captam talento europeu e transformam dados em ativos estratégicos. Um atraso de seis meses na legislação europeia pode equivaler, na prática, a três anos de vantagem competitiva para quem opera fora do quadro regulatório.

E há outro fator raramente dito: o vazio regulatório é também terreno fértil para consultorias, intermediários e escritórios de lobby. Quando as regras são incertas, cresce a indústria que vende interpretação, influência e “navegação de risco”. Cada parágrafo adiado é uma vitória silenciosa para quem lucra explicando o que não está claro. Não é por acaso que o lobby tecnológico em Bruxelas nunca foi tão intenso — e tão lucrativo.

Os defensores da cautela europeia argumentam que regras mal feitas poderiam travar a inovação. O que esquecem — ou evitam dizer — é que a ausência de regras não trava a inovação: concentra-a. E concentra onde já há capital, infraestrutura e escala. O resultado é previsível: a dependência tecnológica aumenta, a autonomia europeia diminui e o futuro digital passa a ser decidido em fusos horários que não respondem perante o Parlamento Europeu.

A verdade é que a Europa está presa a uma ilusão perigosa: acreditar que regular devagar é regular melhor. Não é. Regular devagar, num setor exponencial, é não regular. E quem lucra com essa ausência são exatamente aqueles players que a Europa mais teme ver dominarem o seu espaço digital — empresas capazes de atuar com a rapidez que o seu processo legislativo não consegue acompanhar.

No fundo, a pergunta central não é “como regular a IA?”, mas sim “quem ganha quando não a regulamos?”. A resposta continua a ser a mesma: os gigantes tecnológicos que a Europa não consegue produzir, mas dos quais não consegue prescindir. E cada dia de atraso transforma essa dependência num hábito político difícil de reverter.

Se a Europa quiser preservar alguma soberania digital, terá de perceber que hesitação regulatória não é prudência: é transferência de poder. E poder, no século XXI, não se perde de uma vez — perde-se devagar, em reuniões técnicas, em comunicados neutros, em adiamentos sucessivos. Até o dia em que o continente descobre que já não regula o futuro porque deixou que o futuro fosse escrito por outros.


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