Valter lê um livro por dia.
Lê como quem atravessa uma floresta — sem medo de se perder entre as árvores.
Não se detém nas páginas. Deixa-as ir. Sabe que a memória não é um cofre, é um campo aberto.
E por isso, paradoxalmente, quase nada do que lê permanece — As tramas dissolvem-se, os nomes esfumam-se, os detalhes escorrem como água pelos dedos da manhã.
Mas há momentos — raros, quase secretos — em que alguma coisa fere a superfície. Um gesto de um personagem. Uma imagem irreparável. Uma frase que abre uma porta numa parede antiga.
Quando isso acontece, Valter não anota.
Não sublinha. Não resume. Pega da caneta, silenciosamente, e desenha.
Nunca são desenhos óbvios. Podem ser flores, rostos, árvores e outras coisas. Podem ser apenas marcas. Gestos mínimos — uma linha curva, uma pequena espiral, um símbolo inventado na hora.
E essas marcas não querem explicar o livro.
Querem lembrar-lhe que ali, naquele exato ponto, algo mudou.
Cada livro, então, torna-se uma geografia íntima.Não de ideias, mas de espantos. Não de histórias, mas de feridas e de curas.
As estantes na casa de Valter Hugo, vistas de longe, parecem normais. Mas se abrirmos qualquer volume, encontramos pequenos mapas desenhados à mão. Cartografias de sensações. Cicatrizes felizes.
Porque para ele, o que vale não é o que se recorda. É o que nos redesenha por dentro.
Valter lê para se esquecer.
E desenha para não se perder.
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