Gente de cá e de lá. Episódio 9. António Grassi (I)

Gente de Lá e de Cá na mesa do Cícero
Gente de Lá e de Cá na mesa do Cícero
Gente de cá e de lá. Episódio 9. António Grassi (I)
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Antônio Grassi, ator, produtor cultural e ex-dirigente cultural no Brasil, atualmente residindo em Portugal, possui um currículo tão extenso que é difícil de abordar em poucas palavras. Foi diretor da Funarte, presidente do Inhotim, atuou em diversas peças de teatro, filmes e novelas, sendo reconhecido por suas contribuições artísticas. Além disso, é um pensador e programador intenso, encontrando-se atualmente em Lisboa, no espaço Talante, no primeiro andar da livraria “Ler Devagar!” no bairro de Alcântara, em Lisboa, a menos de 100 metros em linha reta do estuário azul do Tejo. Foi um homem entusiasmado e feliz que encontramos para a entrevista à coluna, em mais uma conversa com Gente de cá de lá, na mesa do restaurante Cícero, por ocasião da Cúpula anual Portugal-Brasil que se realizou em abril na capital lisboeta, 7 anos depois de ter sido interrompida por um período mais conturbado da política interna brasileira, onde as relações entre os dois países perderam fulgor oficial, mas onde a imigração de cidadãos brasileiros para terras lusas aumentou exponencialmente.

No início da década passada, Antônio realizou para o governo brasileiro uma “casa do Brasil em Portugal”, mas hoje você mora aqui. A cultura foi decisiva para a sua mudança?

A minha vinda para cá também se dá por um processo cultural, não só internamente como na minha experiência na minha relação com Portugal. Eu fui comissário do ano do Brasil em Portugal em 2012, lá atrás, como você lembrou bem, e aqui construímos o nosso espaço Brasil lá na LX Factory em Alcântara. Eu queria um vínculo muito forte com essa cidade, que eu considero uma das cidades mais leves que eu conheço. Eu costumo dizer que eu adoro Paris, eu adoro Londres, gosto muito de Firenze, gosto de viajar também para todos esses lugares, mas quando eu volto a Lisboa eu sinto uma leveza que essas cidades que eu adoro não têm.

Tenho que perguntar… Que coisa é essa ?

Tem a ver com a luz, com o céu, com um jeito que a cidade tem, que é diferente de uma pressão que você sente muitas vezes em lugares extraordinários, mas que tem uma pressão externa. Não sei te nomear com muita ciência o que vem a ser isso, é um sentimento, é uma relação que eu tenho forte com Lisboa, dessa leveza da cidade que te recebe. A primeira vez que eu cheguei aqui em Lisboa lá atrás, a sensação que eu tinha é que eu estava na cidade do interior de Minas Gerais, onde a minha família foi criada, onde minha família se desenvolveu. Sou descendente de italianos, no entanto, me identificava com os portugueses de uma maneira muito próxima. Então, nessa minha relação afetiva, a cidade acrescentou o fato de que nós criamos aqui um projeto cultural que eu reconheço hoje que deixamos um legado importante. Não só nas relações que estabelecemos, mas até aquele momento em que o fio da história se perdeu. Eu diria mais nos últimos 4 anos no Brasil, e que essa relação não só internacional como cultural foi meio que desatada, e aqui em Portugal a gente sempre encontrou um amparo, uma forma de estar aqui presente. A minha iniciativa de vir para cá ela veio sendo costurada, cozinhada muito tempo. De quando em quando dizer: eu preciso de um ano que seja para dar uma respirada fora do Brasil, e aí surgiu uma coincidência de estar fechando um ciclo na minha gestão como presidente do Inhotim, se deu agora, no ano passado, e ao mesmo tempo também construindo uma possibilidade de estar aqui empreendendo outros projetos, enfim… A minha preocupação, a minha vontade de trabalhar a questão da língua portuguesa foi sempre muito presente. Depois que eu fui comemorar o ano do Brasil aqui, da minha passagem pela Funarte, eu acho que é esse trabalho junto da língua portuguesa, da cidadania da língua portuguesa, fazer uma referência de uma coisa que é o seu tema, é algo que sempre me estimulou muito. Então, a minha vontade de vir para cá, de ter oportunidade de estar aqui com minha filha pequena, sendo criada num ambiente de ter contato com outras coisas, claro que isso tudo somou…

Ouço isso de muitos amigos brasileiros que eu encontro aqui, eles encontram em Portugal uma espécie de Brasil na sua juventude. Os brasileiros encontraram uma nova vida, “tão leve, tão feliz”, porque é uma espécie de memória da sua juventude. Isso é uma oportunidade gigante para Portugal. Hoje eu digo que Portugal é um estado brasileiro na Europa. Sempre houve uma imigração brasileira em Portugal, mas hoje é diferente. A elite brasileira está imigrando para Portugal, está aqui e está participando, está se enturmando. Não é mais trabalho menos diferenciado, é trabalho especializado e trabalho cultural. Isso tem um potencial de mudança da relação de Portugal com o Brasil?

É isso aí! Tem muita, e acho também que tem uma coisa que é uma mudança de cenário, né? É um fato curioso. Quando eu vim fazer o comissário do ano do Brasil aqui em Portugal, nós tínhamos alguns dados, alguns números que levantaram antes, que me chamaram atenção. Um deles era que pelo Aeroporto de Lisboa circulavam naquele ano de 2012 cerca de 800 mil brasileiros que não desciam, que passavam pelo Aeroporto de Lisboa para fazer conexão para outros países. Isso foi uma das questões. Nós fizemos um trabalho de conversar e isso repercutiu até em ações. A própria TAP criou uma história que era o stopover que veio dali, porque a passagem desdobrada…

Isso é uma das coisas mais importantes de interromper, essa que eu acho que fez com que quem tinha dinheiro para comprar uma passagem ficasse dois dias, e criaram vários estímulos em relação a isso, que era não só do bilhete, como criaram, se você está na classe executiva, me parece, você tinha duas diárias no hotel Dom Pedro, que era o convênio com a TAP, ou você tinha o voucher de desconto no corte inglês, enfim, criaram vários estímulos para que esse cenário mudasse.

E o que a gente vê agora, conforme você estava dizendo, é um inverso disso. Não só descem, como muitas vezes descem para ficar. Houve uma mudança absoluta nesse panorama. A gente tem hoje milhares de brasileiros aqui mesmo fora do oficial, né?

Você é um homem que está em tudo, mas também é um militante da política, engajamento político. Como você vê aqui, vivendo aqui em Portugal, o impacto que a Revolução teve, não no Brasil, mas na cultura em Portugal? Como é que você percebe isso do ponto de vista da evolução da sociedade portuguesa na abertura desse processo, uma visão do brasileiro que é militante cultural e político em Portugal?

Eu não vivi esse período salazarista anterior à revolução, no entanto, é mesmo o que nós vivemos agora recentemente no Brasil já dá para você ter um parâmetro de uma enorme diferença no que diz respeito a tudo. Muito do que é extrema direita prega hoje, não só no Brasil, como no mundo inteiro, é uma coisa que me chama muito atenção da liberdade de expressão. É como se a eles faltasse liberdade de expressão, quando o que a gente sempre sente é que o que a extrema direita mais faz é caçar liberdade de expressão. Então, o que eu sinto é que Portugal teve um avanço enorme em relação a isso culturalmente. É claro que a inserção mesmo da União Europeia, dessas relações, tem alguns dados que culturalmente você vai sentir até no cotidiano. As referências portuguesas são muito mais em relação à Europa, obviamente, e as brasileiras são muito mais americanizadas. Isso passa por tudo, pela música, pelas estruturas de discussão, pelo ambiente acadêmico.

Faz sentido a gente pensar como é que a elite brasileira vai moldar esse pensamento universal, esse pensamento até político, poder ajudar os portugueses, que também vão sentir esse momento, até na própria política interna. Como é que você vê que a experiência do Brasil, a experiência dos brasileiros da elite, podem ajudar Portugal nesse embate que pode chegar agora da direita?

A gente vive agora no Brasil uma situação que, a princípio, pede a necessidade de um diálogo, de um país absolutamente dividido como a gente tem vivido agora. Dias atrás, aconteceu uma coisa absurda dentro do congresso nacional, o ministro da justiça se levanta porque é agredido por parlamentares, onde a dificuldade para esse diálogo está muito presente. Aqui em Portugal, nós tivemos durante esse período uma lição importante na questão, pelo menos para mim, a minha percepção desse diálogo possível, em que o país tem que se obrigar a ter. Quando nós fizemos aqui o ano do Brasil em Portugal, lá em 2012, nós tínhamos aqui no governo federal, como a gente chama no Brasil, era o governo do Passos Coelho, do PSD, e hoje o presidente da Câmara Municipal era o Antônio Costa. Eles tinham um conflito, uma briga no debate político. Nós conseguimos com a cúpula dos dois governos brasileiro e português estabelecer um tratado de cooperação, em que todas as instituições se obrigaram a ter uma relação de trabalho para que esse projeto acontecesse.

Então, nós tínhamos aqui no Brasil uma instituição chamada Ancine, que é a agência do cinema, que é independente, e lá em Portugal tinha a embaixada, o governo português. Nós conseguimos ter um diálogo de instituições que até hoje é pouco comum. Isso foi uma lição para mim. Eu cheguei a fazer uma brincadeira com os portugueses. Perguntei: vocês estão felizes com isso? Nós estamos aqui estabelecendo uma cooperação entre Brasil e Portugal e vocês estão felizes com isso? Como é que vocês conseguem isso? E a resposta era: aqui temos que fazer assim. Isso pra mim foi uma grande lição. A minha grande bandeira, meu grande mote sempre foi fazer desse idioma um lugar onde a gente possa trabalhar uma cidadania da língua portuguesa.

Então, esse é um dos meus projetos aqui em Portugal. Por exemplo, já estive várias vezes na Universidade de Coimbra, com o professor Carlos Reis, que é um estudioso da obra de Machado de Assis, e ele me apresentou uma tese dele, de um trabalho dele, em que ele diz que quando a gente começar a fazer uma comparação, a fazer um estudo comparado do trabalho do Machado de Assis com o Fernando Pessoa, nós vamos descobrir uma outra coisa, uma outra relação. Ele, através de um trabalho que ele fez, deu um nome pra isso, que é uma cidadania da língua portuguesa. Nós vamos discutir isso agora, dentro de uma universidade brasileira. Vamos levar a tese dele para lá, para nós estudarmos, para nós, então, propor um seminário lá em Portugal, mas essa é uma ação daquilo que eu estou falando. Eu quero fazer dessa cidadania, dessa língua, uma coisa mais orgânica possível, que não fique num intercâmbio turístico de festivais.


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