Quem escreve sabe a frase de cor – “a realidade ultrapassa sempre a ficção”. Vemos isso em muitas das histórias que nos entram pela casa adentro. Nas notícias, nas redes sociais, nos relatos pessoais. Nenhuma imaginação é tão poderosa como os factos. O maior terror está na vida real.
“hoje vivemos num mundo em que as pessoas não sabem o que é o medo, porque já não entendem o espanto”
Essas histórias estão em toda a parte. Quem nunca as ouviu? Batem à porta da nossa família, amigos, vizinhos, amigos de amigos. Verdade verdadinha, vizinho, fulano e sicrana, isto e aquilo, veja lá a tragédia. Moravam os dois aqui ao lado, no prédio da frente.
Mas nessa vida que “dava um filme”, nós nunca conseguimos entrar. Porquê? Porque a realidade ultrapassa sempre a ficção, mas a vida real nunca chega aos calcanhares do cinema. Falta-lhe assombro.
Encontrei a palavra- assombro – num encontro feliz esta semana com um amigo que trabalha precisamente nessa arte: ajudar a compreender a realidade a partir da sua versão ficcionada. O José Carlos Oliveira faz filmes – e ao próximo sobra-lhe esse assombro.
O Zé vive a vida como se fosse um guião e pensa cinematograficamente. Ele não diz, ele filma. É sempre uma delícia vê-lo olhar as mesmas coisas que nós como se estivessem já no ecrã. Assombrados, Zé – disse-me ele, e a RTP já assinou contrato, só falta o ICA. Quero explicar o medo através do cinema.
Respirei fundo, olhei-o nos olhos e a palavra surgiu como um assombro. Lembrei a canção do Sérgio Godinho – “disseram-me um dia Rita (põe-te em guarda) depois do primeiro assombro logo o corpo fica fraco” – e percebi o espanto e a admiração. Depois ele disse-me – hoje vivemos num mundo em que as pessoas não sabem o que é o medo, porque já não entendem o espanto. Repirei ainda mais profundamente. É mesmo verdade. Estaremos todos assombrados?
TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO AQUI
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