A obsessão em descobrir se um texto foi escrito por inteligência artificial revela mais sobre a nossa ansiedade do que sobre a IA.
O uso do travessão como “marca da besta” textual — um suposto indício de que a máquina está por trás do escrito — é um sintoma de uma nova superstição tecnológica. O fenômeno é curioso: um sinal de pontuação comum em textos literários e jornalísticos agora virou evidência forense para caçadores de robôs. A suposição é falsa, mas a convicção é real e, como tantas convicções, opera no vazio do que não se entende.
“Uma crença é algo que você faz quando não sabe.”
A reportagem da Folha de S.Paulo escancara a tese: usuários comuns nas redes associam a presença do travessão a textos feitos por IA. Não importam a coerência, a beleza da frase, o pensamento estruturado. Se houver um traço horizontal separando a fala, a máquina foi quem falou. O dado, que nunca existiu de confirmado, circula como verdade; e, como toda desinformação vestida de “intuição digital”, alimenta filtros, exclusões, decisões automáticas e julgamentos apressados.
A questão não é apenas gramatical ou tecnológica. É filosófica. A pergunta “isso foi feito por uma IA?” se tornará, em breve, tão irrelevante quanto perguntar se alguém chegou de bicicleta ou navio. O que importa é que chegou. Ou mais ainda: o que importa é como chegou. Com que qualidade, com que propósito, com que consequência. A autoria será medida por critério estético, ético e criativo; não pelo log de acesso do ChatGPT ou pela vírgula que escapou ao corretor automático.
Mas enquanto esse futuro não se impõe, seguimos lidando com um presente em que boa parte das pessoas confunde autoria com suspeição. Travessão, palavras compostas, citações em itálico — tudo parece gatilho para paranoia. O que se pede de um texto, no entanto, é o mesmo que sempre se pediu: que diga algo que valha a pena ser lido. Se for assinado por um humano ou por uma colaboração entre máquina e humano, isso será apenas nota de rodapé. Até porque não é possível escrever um texto sem o uso de uma esferográfica. Ou mesmo pena de pato.
O verdadeiro desafio está em entender o que o uso da IA revela sobre nós. Ao projetar sobre o robô as nossas expectativas, também denunciamos nossas falhas de leitura, nossas limitações de repertório e nossa insegurança diante de uma linguagem que se sofisticou mais rápido do que a nossa formação foi capaz de acompanhar.
Quem teme a inteligência artificial, na verdade, teme a própria ignorância.

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