A promessa do horizonte

Invoco as águas que conhecem o nome dos desaparecidos, os ventos que falam com os mastros e a luz que escreve mapas sobre o dorso do mar. Que me emprestem a sua voz para contar a história de Lísia, filha de dois oceanos: o Atlântico que a fez nascer em marés grandes e o Mediterrâneo que a chamou um dia, com uma frase preta sobre pedra amarela: sonhar a vaga, no horizonte, uma promessa.

Lísia vinha de longe. Trazia no bolso um relógio herdado do avô piloto, atrasado cinco minutos, e no peito uma fome antiga de linhas que se perdem na distância. Chegou a Nice num verão de peixe e poeira, as arcadas a fazerem sombra aos cafés, e a frase — aquela frase — a atravessar o céu como um cordel onde alguém pendurou letras e silêncio.

Foi então que a cidade lhe contou um segredo. “Há muito, muito tempo, quando as primeiras velas árabes ainda aprendiam o gesto do vento, existiu aqui uma mulher chamada Thalía. Era guardiã de promessas. Recolhia as juras ditas no cais e guardava-as num cofre de sal. Se a vaga cumpria, devolvia-as em risos; se a vaga falhava, punha-as ao sol e deixava que se tornassem pássaros.” Assim disseram a Lísia as velhas que remendam redes, com uma naturalidade de quem entrega pão.

Aconteceu que um dia o mar ficou de ferro. Nem um barco ousou cortar o espelho da água. O horizonte, em vez de promessa, tornou-se parede. Os rumores contam que fora o rei invisível das correntes, enciumado da língua dos homens, quem ordenou o silêncio. E as vozes que antes atravessavam o porto — as cartas para o futuro, os pedidos de regresso, as pequenas orações de quem parte — ficaram presas no cofre de sal de Thalía. Os jovens não amavam, os velhos não adormeciam, os pescadores lançavam redes sem desejo. Foi então que se ergueu, sobre os arcos, a frase: sonhar a vaga… Não como consolo, mas como ordem.

Lísia ouviu este rumor e reconheceu nele a fome que a trazia. Decidiu procurar o cofre. Não por curiosidade turística, mas porque pressentiu que nele se escondia também a promessa do seu próprio sangue: a carta que o avô nunca enviara, escrita num porto qualquer do Levante, antes de desaparecer.

A sua jornada começou na pedra. Caminhou sob as arcadas como quem atravessa um instrumento musical onde cada arco é um compasso. Perguntou ao cozinheiro que descasca limões, à mulher que vende postais, ao velhote que vigia as gaivotas com olhos de polícia municipal. Recebeu sorrisos, ombros encolhidos, um mapa desenhado num guardanapo. E finalmente, ao cair da tarde, um barqueiro de mãos em nó de marinheiro disse-lhe: “Só há um caminho para quem procura promessas: para dentro do mar.”

Partiram a meia-noite. A lua subiu redonda, como um prato de cerâmica portuguesa pousado sobre a mesa do Mediterrâneo. O barqueiro remava sem pressa, como se cada remada fosse uma pergunta. Quando largaram a costa, a água começou a escurecer de uma maneira que não é só noite; é memória. Ao longe, um farol piscava com o ritmo de um coração cansado.

“Vês aquele ponto?” — perguntou o barqueiro. “É a Ilha do Garrote. Diz-se que ali as correntes se encontram e se interrogam. É lá que, ao amanhecer, o mar deixa ver aquilo que esconde.”

Dormiram enrolados ao vento, e no sonho de Lísia repetia-se o refrão: sonhar a vaga, no horizonte, uma promessa. As palavras eram agora uma escada, degrau a degrau, até onde começa o azul.

Quando o primeiro ouro do dia acendeu a orla do mundo, a água começou a mexer-se debaixo do barco, como se respirasse. Não era o mar comum: eram vozes. Milhares de vozes, cada uma com o peso de uma história, ascendendo do fundo. Lísia mergulhou as mãos, e sentiu letras: promessas dissolvidas que, ao toque, voltavam a ser frase.

“Trar-te-ei figos quando regressar.”
“Se o vento for brando, juro casar.”
“Volta antes do inverno.”
“Perdoa.”
“Espera por mim.”
“Vive.”

Lísia chorou com uma alegria de animal que encontra água. Entre todas, reconheceu a caligrafia do avô — um homem que partira sem naufrágio, desaparecido não nas ondas mas no costume de calar. A carta dizia pouco: “Se eu não voltar, promete ao mar que farei de cada horizonte uma promessa.” Era um excesso bonito e inútil. Mas naquele instante, na ribalta da ilha onde as correntes conversam, a frase pareceu ter peso de lei. Lísia abraçou a água como se pudesse abraçar um passado inteiro.

Então o mar falou. Não com som, mas com forma: ergueu-se numa vaga alta, lenta, antiga, que tinha no corpo as rugas de todos os mares. E nessa altura Lísia entendeu. O rei invisível das correntes não se alimentava de barcos, mas de promessas quebradas. Crescera alimentado pelas juras vazias que os homens lançam como moedas a um poço — sem intenção, só desejo. Para vencê-lo, era preciso cumprir uma promessa impossível.

“O que posso prometer-te, mar?” — perguntou. E o mar respondeu com o brilho de peixe no sol: promete-me que não desistirás do horizonte.

Parecia simples, e no entanto Lísia soube que era uma promessa maior do que qualquer jura de amor. Porque não desistir do horizonte significa partir sempre um pouco, mesmo quando se fica; significa manter o coração nómada, mesmo quando a casa é doce; significa não aceitar que o hoje seja uma gaveta com a chave perdida.

“Prometo.” E, ao dizer, levou às arcadas de Nice uma espécie de claridade. No topo da muralha, as letras pretas ganharam espessura. Gente que passava, distraída de turismos, parou a olhar. Um miúdo perguntou à mãe o que queria dizer songer. A mãe não soube traduzir: disse-lhe “é imaginar”. Lísia, regressada do mar, corrigiu: “É sonhar com propósito.”

O rei invisível, com fome antiga, sentiu a cidade guardar a palavra como quem guarda pão para o inverno. Durante sete dias e sete noites — porque nos contos épicos o sete pesa como metal — enviou contra a costa sopros de desânimo, marés cinzentas, a lembrança do erro. Mas a frase, agora acesa pelo pacto de Lísia, resistiu.

No primeiro dia, veio o vento dos vencidos: passou pelos cafés, engravidou conversas de cinismo. No segundo, veio a maré da rotina: as mãos esqueceram de acenar a quem parte. No terceiro, uma espuma de notícias más levantou-se como praga de medusas. No quarto, a chuva anulou a linha entre céu e água. No quinto, os sinos ficaram roucos. No sexto, os barcos estacionaram no mesmo ponto para se habituarem à ideia de não partir. No sétimo, o rei invisível julgou que a cidade estava preparada para a desistência — e soprou.

Foi então que Lísia subiu aos arcos. Levava uma concha ao peito, da Ilha do Garrote, e as mãos cheiravam a limão e a corda. Sabia que uma promessa não se cumpre com declarações mas com um gesto. Respirou o sal do mundo e falou, não ao rei, mas à cidade:

“Todos nós devemos um horizonte a alguém. Aos que nos criaram, aos que amámos, aos que ainda não nasceram. Um horizonte é uma dívida alegre. E o mar é o corpo dessa dívida. Se não partirmos, se não ousarmos, o rei das correntes engorda e faz da água um espelho imóvel. Mas se mantivermos no olhar esta inquietação — a vontade de ir, de fazer, de aprender — então até a pedra se move um pouco.”

As pessoas ouviram e riram e calaram-se e voltaram a rir. Um pescador velho, desses que sabem a gramática da maré, ergueu de novo o primeiro mastro. Um grupo de estudantes pintou uma linha azul no chão que ia do mercado até o cais, para lembrar que a cidade termina e começa ali. Uma mulher que não via o filho há nove anos comprou um bilhete de comboio. Um homem que se julgava tardio telefonou ao amor antigo. E um miúdo, o mesmo miúdo da pergunta, escreveu num papel: “Quando crescer, serei quem parte e quem recebe.” Dobrou-o e meteu-o numa garrafa de água vazia. A mãe não o impediu.

Nesse mesmo dia, sem que ninguém desse por isso, o relógio de Lísia adiantou-se cinco minutos. O tempo, com uma delicadeza de deus pagão, tinha-lhe pago o ritual.

O rei invisível, ofendido pela desobediência mansa, quis ainda lançar uma última prova. Fez aproximar-se um navio negro, sem bandeira, desses que trazem a bordo o medo do mundo: gentes em fuga, gentes sem papéis, gentes com o olhar em ferida. Esperava ver a cidade recuar para dentro de si, como caracol ofendido. Mas a frase negra sobre os arcos — sonhar a vaga, no horizonte, uma promessa — cresceu como ponte. E a população de Nice, ou pelo menos a parte da população que se lembra de caminhar, desceu até ao cais de mãos abertas. Não com a inocência de um cartaz, mas com o trabalho de baldes e toalhas e sopa. O navio entrou, a promessa cumpriu-se de novo, e o rei das correntes perdeu mais um dente.

Com o tempo, o cofre de sal de Thalía abriu-se, talvez por tédio, talvez por excesso de luz. As promessas, devolvidas, voaram em pássaros pequenos que aprenderam o nome das ruas. Não foi milagre: foi trabalho de todos. As letras sobre os arcos, renovadas por um pintor de enseadas, tornaram-se agenda e reza. Os casamentos, se falharam, falharam com honestidade. Os negócios, se ruíram, ruíram depois de tentativas verdadeiras. E a infância da cidade voltou a brincar com os mapas.

Quanto a Lísia, ficou. Não por desistência do horizonte, mas porque descobriu que um horizonte também se guarda. Abriu uma oficina perto do mercado, onde restaura bússolas avariadas e quadros de mar pintados com excesso de céu. Na parede, em giz, escreve todos os dias a mesma frase — e muda apenas a pontuação: Sonhar a vaga. Sobre o horizonte, uma promessa. Ou Sonhar: a vaga, sobre o horizonte, uma promessa. Ou Sonhar a vaga sobre um horizonte: uma promessa? Cada manhã, escolhe uma versão e trabalha de acordo com ela. Alguns chamam-lhe superstição, outros chamam-lhe método; ela chama-lhe linguagem.

Às vezes, ao entardecer, quando os turistas cansam e os pássaros começam a praticar o regresso, Lísia sobe aos arcos e pousa a mão nas letras, como quem mede a febre a um filho. Sente que estão mornas: sinal de que ainda respiram. E lembra-se do avô, do relógio que atrasava, do barqueiro que perguntava, de Thalía e do seu cofre, do rei das correntes a emagrecer por falta de promessas quebradas. Sorri. O Mediterrâneo devolve-lhe o sorriso com uma ondulação curta, cortês.

Se passares por lá, repara: há algo de diferente na pedra. Não é só uma inscrição de arte pública, nem apenas uma frase posta para fotografias. É uma instrução de navegação. Quem a lê, mesmo sem perceber francês, endireita um pouco os ombros. Quem a repete em silêncio, sente dentro do peito uma vela a encher. Quem a escreve no caderno, ganha uma dívida alegre com a manhã seguinte.

E se te perguntares, como um miúdo, o que quer realmente dizer songer, lembra-te de Lísia: sonhar não é pausa — é projeto. A vaga é movimento, o horizonte é direção, a promessa é pacto. Entre os três, ergue-se a vida como uma cidade sobre arcos.

Assim termina esta história, mesmo sem ter fim, porque nenhum horizonte tem borda. A frase continua lá: SONGER LA VAGUE SUR UN HORIZON UNE PROMESSE. Que a leias um dia e a cumpras sem alarde, como quem ata bem o nó que sustém a vela. O resto é mar. E o mar — sabe-o quem já amou — é uma promessa que aprende, no corpo, a cumprir-se.


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