Havia de haver uma vez

Havia de vir aquela vez em que me sentava aqui de coração vazio. É hoje. Hoje é o dia em que esta página é tão vazia quanto infinita. 

A angustia é quando os olhos se inutilizam e já não servem para ver o que o mundo conta. Eu olho, mas não há nada que queira ver. Reparo e tudo são contornos esbatidos sem arestas e sem luz.

Havia de vir aquela hora em que eu não saberia continuar, em que a dor é mais forte que a vontade de a escrever e o branco da página até parece uma intifada de pedras tão duras e invisíveis. Não as quero, mas obrigo-me a elas. É preciso continuar.

Sempre tive os meus truques quando a inspiração escasseia, todos temos, e sempre encontrei inspiração, mesmo quando não há motivo na rua, nem polémica na praça. Se não sair soneto, sai pelo menos quadra de rimar, que até Pessoa sabia ao gosto popular.

Um escritor tem as suas manhas, não é? Isto é uma técnica como outra qualquer, tão matemática como um sistema de equações e sem incógnita de nenhuma. Artigo + sujeito + verbo + complementos +… Hélas! Mas sem predicado a ação não avança, e sem ação não há novidade e sem novidade não há que dizer.

Por isto, os que escrevem pensam sempre, mesmo que não digam, que há-de haver aquela vez em que a tinta não escorre, a pena não pia, a tecla não clica; aquela vez em que, ao contrário do guarda-redes antes do penalti, não há sequer o lado errado de uma angustia para te atirares. E só consegues ficar quieto, a olhar o vazio infinito de um lugar que não conheces e onde não consegues inscrever sequer uma ideia simples como a dor.

Sempre pensei que esse dia não haveria de chegar, pelo menos enquanto não se me varresse da memória o alfabeto e pudesse pelo menos esbracejar-lhe sintaxes e ameaçar-lhe metáforas, mesmo que atabalhoadamente. Pensei sempre que alguma coisa haveria de surgir. 

Mas hoje é diferente. Porque não consigo ir direito ao assunto. Que digo eu? Não consigo sequer pensar nele. Entretenho-me apenas em baixar o nível ao branco deitando-lhe palavras por cima; porque muitas palavras alinhadas fazem uma linha e duas ou três linhas um parágrafo e com seis ou sete já posso ir chorar.

Havia de haver aquela vez em que não podia mais escrever. Porque o que sinto é muito maior que o meu talento e ainda mais silencioso do que a morte.

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