A citação de Séneca
Todas as coisas precisam saber ouvir para serem salvas
Durante anos, ficou ali — silenciosa —, escutando os passos que subiam devagar a encosta, os sinos longínquos do convento, os pássaros que lhe pousavam entre os galhos como notas breves numa pauta aberta.
A sua seiva era lenta como o fado, e nela moravam vozes antigas, cantigas esquecidas, promessas que nunca chegaram a cumprir-se.
Chamava-se figueira apenas por necessidade, porque tinha alma de guardiã. Os monges sabiam disso, e os estudantes bêbados que, de madrugada, lhe confiavam segredos também. Mesmo os pombos pareciam inclinar a cabeça com reverência quando lhe cruzavam a sombra.
No terceiro verão da Bienal, alguém percebeu que a figueira murmurava. Não com palavras, mas com variações, quase imperceptíveis, de som e luz. Uma artista do Canadá, dessas que vê música em tudo, encostou-lhe sensores e microfones e escutou. Disse que ela respondia. Que precisava da melodia certa, e da luz certa, e de alguém que a ouvisse como se escuta uma oração.
Cada manhã, os voluntários vinham tocar-lhe Bach. À tarde, tentavam Tom Jobim. Mas era sempre à hora azul, quando o sol descia por detrás do Mondego e atravessava o claustro em lâminas inclinadas, que a figueira reagia.
Primeiro, tremia. Depois, deixava cair uma folha — nunca mais do que uma — e as suas raízes vibravam numa frequência quase humana. O canadense gravou. Amplificou. Descobriu que a melodia mudava consoante a luz que chegava. Não era só o som que ela ouvia. Era o instante. A temperatura. A cor do céu.
O boato correu a cidade. Vieram jornalistas, vinham turistas, vinham poetas. Alguns achavam tudo uma grande encenação, outros ajoelhavam-se junto ao tronco como se fosse um relicário. Mas o que ninguém podia negar era que a figueira estava viva — e que respondia.
E quando a Câmara Municipal decidiu arrancá-la em nome de “requalificação”, foi a cidade inteira que cantou. Uma multidão de vozes, de instrumentos, de gravações da sua própria música.
Durante horas. Até que, no silêncio do momento seguinte, a figueira lançou um novo broto — um ramo curto, torto, quase tímido — que apontava direto ao céu.
A obra foi suspensa. A Bienal ganhou fôlego.
E Coimbra, pela primeira vez em muito tempo, acreditou que ainda podia renascer.
Obrigado Carlos Antunes pela epifania Coimbrã
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