O momento do amor é o momento em que a guerra para

No centro uma alma destruída. Na sala o ar cheirava a ferro e a negro. As paredes estavam furadas de balas, as janelas partidas deixavam entrar o vento frio que carregava o pó das casas derrubadas. E, ainda assim, havia música. Não música real, mas uma música subterrânea, que surgia quando dois corpos se aproximavam apesar da violência.

Ele chamava-se Kiffer, soldado jovem demais para a dureza dos seus olhos. Ela era Ana, enfermeira que já não chorava, porque as lágrimas haviam secado depois de tanto sangue. Cruzaram-se num posto de triagem improvisado, entre feridos que gemiam e explosões ao longe.

Não se disseram nada da primeira vez. Apenas trocaram um olhar — como se se reconhecessem de um tempo antes da guerra, de uma vida que não viveram juntos mas que os esperava.

Nas semanas seguintes, encontravam-se às escondidas. Às vezes bastava um gesto, um copo de água partilhado, uma mão que roçava a outra sob o pano ensanguentado de um ferido. O mundo parecia suspenso nessas pequenas colisões.

Numa noite, quando as bombas pararam por alguns minutos, Ana puxou Kiffer para trás das tendas, onde havia apenas a sombra das ruínas. A cidade parecia um corpo morto, mas ali dentro pulsava algo vivo. Foi então que se beijaram.

Naquele instante, a guerra parou. Não no sentido literal — os generais ainda traçavam mapas de morte, os soldados ainda empunhavam armas. Mas para eles, naquele beijo, o universo inteiro silenciou.

Nenhuma granada explodiu, nenhum grito cortou o ar. Só havia o som da respiração mútua, quente e urgente, como se todo o cosmos tivesse decidido lhes conceder aquele minuto de eternidade.

O amor deles não era resistência, nem fuga, nem pecado. Era um milagre. A prova de que, mesmo no coração da devastação, algo se erguia contra a lógica do ódio. E se alguém perguntasse o que viram nesse primeiro beijo, responderiam: viram a paz que ainda não existia, mas que já estava escrita dentro deles.

No dia seguinte, a guerra voltou a rugir. Homens tombaram, casas arderam, crianças foram arrastadas para o medo. Mas sempre que se encontravam — num corredor destruído, num canto escuro da enfermaria, sob a lua cortada pelo barulho dos aviões — havia aquele momento suspenso.

E cada vez que os lábios se tocavam, o mundo cessava de se destruir.


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