Quando o Guardião Tomba


Durante décadas, aceitamos — por conveniência ou crença — que os Estados Unidos eram os guardiões da democracia no mundo. Agora, vemos esse guardião se desfazer em público, entre insultos à justiça, rupturas institucionais e demissões militares. A queda já começou — e o barulho é ensurdecedor.

Os Estados Unidos sempre foram apresentados ao mundo como o farol da liberdade, os guardiões da democracia, os defensores da ordem internacional e os promotores dos valores liberais ocidentais. Desde a Segunda Guerra Mundial, essa narrativa foi habilmente construída e absorvida — não apenas por interesses políticos ou econômicos, mas por um imaginário coletivo que se entranhou até mesmo nos mais críticos observadores internacionais. Aceitávamos, ainda que com reservas, que a máquina de guerra norte-americana operava sob o pretexto de proteger a paz. Que seus interesses econômicos vinham embrulhados em promessas de estabilidade institucional. Que a sua ingerência era o preço a pagar pela ordem.

A história é um pesadelo do qual tento despertar.”

James Joyce

Hoje, porém, o que vemos é outra coisa. Não mais o gigante benevolente que, mesmo torto, fingia estar do lado certo da história. Vemos um país enredado em guerras culturais internas, presidido por figuras que flertam com o autoritarismo, e uma sociedade profundamente dividida, onde o fanatismo e o ressentimento corroem os alicerces democráticos. Não é apenas o mundo que olha diferente para os Estados Unidos. São os próprios americanos que já não reconhecem a imagem refletida no espelho.

A surpresa é inusitada apenas para os distraídos. O declínio moral não começou ontem. Já se insinuava nos cárceres de Guantánamo, nos bombardeios seletivos com “danos colaterais”, nas eleições decididas por fake news e na crescente submissão ao capital desenfreado. O que agora se torna visível — e perigosamente banal — é a substituição da confiança institucional pelo espetáculo de uma democracia performática, onde a verdade se tornou irrelevante e a credibilidade, um item de consumo.

Recentemente, testemunhamos um agravamento dessa crise institucional. O presidente Donald Trump demitiu o presidente do Estado-Maior Conjunto, general C.Q. Brown, e afastou outros cinco almirantes e generais, em uma reformulação sem precedentes na liderança das Forças Armadas dos Estados Unidos.  Em resposta, cinco ex-secretários de Defesa criticaram duramente essas demissões, qualificando-as como imprudentes e politicamente motivadas, alertando que tais ações ameaçam politizar as Forças Armadas e enfraquecer a segurança nacional.  Além disso, o presidente do Supremo Tribunal dos EUA, John Roberts, repreendeu Trump por seus ataques a um juiz federal, enfatizando a importância da independência judicial.

Ainda assim, há quem continue a mirar Washington como farol. É uma nostalgia perigosa. A crença de que os Estados Unidos são os guardiões da democracia é hoje não apenas uma ilusão — é uma distração. O novo mundo, multipolar e interdependente, pede outro tipo de liderança. Mais sensível, mais justa, menos centrada em si mesma. O problema é que, sem esse suposto guardião, o mundo ainda não escolheu quem o protegerá dos próprios abismos.

K


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