Quando o impensável se torna comum, é o mundo que está a mudar

Houve um tempo em que os títulos públicos dos Estados Unidos não precisavam de explicação. Eram o sinônimo do seguro, o abrigo em meio à tempestade, o ponto de equilíbrio entre risco e civilização. Eram tão neutros quanto o céu — e tão confiáveis quanto o tempo. Mas hoje, até eles tremem.


O impensável perdeu a vergonha. A ideia de que o presidente de uma das maiores democracias modernas interfira abertamente na autoridade do banco central já não espanta — apenas ajusta curvas. Jay Powell já não é só um economista; é personagem de guerra. E o Tesouro americano já não é apenas um ativo financeiro; é o campo onde se trava uma batalha de prestígio e poder.

Vivemos tempos em que a instabilidade não vem de fora. Ela é fabricada dentro do sistema. É gerada nos discursos, nas redes, nos cálculos eleitorais. É política monetária por ameaça. É populismo financeiro. E os mercados — supostamente racionais — passaram a precificar o ruído, a incorporar a dissonância como variável permanente.

se o dólar já não representa só o poder do Estado, mas também a sua desordem, então o mundo está, de fato, a mudar.


Mas o que está em jogo não é apenas uma taxa de juro. É a própria confiança como ativo. Porque se até os Treasuries perdem aura, então não há mais território sagrado. E se o dólar já não representa só o poder do Estado, mas também a sua desordem, então o mundo está, de fato, a mudar.

Talvez seja esse o verdadeiro retrato do nosso tempo: instituições centenárias convertidas em peças móveis de um jogo onde tudo é performance. O que antes se chamava estabilidade agora se chama obstáculo. O que era prudência agora é descrito como lentidão. A técnica virou suspeita. E a autoridade, uma função do algoritmo.

O mundo sempre teve líderes disruptivos. Mas agora tem investidores resignados. Que aceitam pagar mais para compensar o risco político. Que calculam quanto custa a incerteza, e seguem em frente. E que, sem perceber, ajudam a normalizar o abalo como nova forma de ordem.

O tempo que vivemos já não exige rupturas dramáticas. Basta repetir o impensável até que ele se pareça com o natural. E nesse cenário, até os pilares mais sólidos — como os títulos do Tesouro americano — começam a ranger.

A independência dos bancos centrais não é uma teimosia tecnocrática: é uma âncora de previsibilidade. Ao questioná-la, Trump não apenas levanta suspeitas sobre o futuro da política monetária dos EUA — ele reconfigura o próprio papel da confiança como lastro invisível da economia global. E confiança, uma vez abalada, não se recompõe por decreto.

Financial Times | 25.abr.25


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