Em nome da ética, da sustentabilidade, da proteção animal. Mas eis o detalhe: a substituição do couro será feita, na maioria dos casos, por plásticos sintéticos derivados de petróleo.
Poucas frases dizem tanto sobre o nosso tempo quanto essa, perdida no final de uma reportagem que pretendia, em tese, noticiar um avanço. Marcas globais de desporto — Mizuno, Asics, Adidas, Puma — anunciaram que deixarão de usar couro de canguru na fabricação de chuteiras.
“Substituíram o melhor couro do mundo por plástico.”
Neal Finch, Australian Wild Game Industry Council
A frase de Finch, porta-voz de um setor evidentemente interessado na continuidade do abate regulado dos marsupiais, soa incômoda — mas talvez seja justamente por isso que mereça atenção. O couro de canguru é, segundo especialistas, um dos mais leves, resistentes e duráveis do mundo. O uso da pele desses animais era regulado por cotas e associado à alimentação de comunidades aborígenes. Ainda assim, a estética da violência contra um animal exótico venceu a lógica ecológica de longo prazo.
Há algo perversamente contemporâneo nessa lógica de substituições. Evita-se o sangue, mas amplia-se o dano. Evita-se o cheiro da morte, mas tolera-se o descarte tóxico. Evita-se a imagem do canguru abatido, mas aceita-se a realidade do microplástico nos oceanos. O novo moralismo de consumo não olha para os sistemas, mas para os símbolos. Não mede consequências, mas confortos morais.
Não se trata de defender o couro animal — mas de entender por que estamos aceitando, sem espanto, soluções que soam bem e fazem mal. A lógica do ESG performático permite que marcas adotem materiais menos sustentáveis desde que pareçam mais éticos. A ética vira fachada. O marketing vira argumento. A natureza, figurante.
Enquanto isso, seguimos aplaudindo os gestos limpos que sujam por dentro. Saltamos do couro ao plástico como quem pula do abismo para o espelho, sem perceber que a queda continua — agora, mais leve, mais lisa, mais reciclável.

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