O poeta que se despede em chamas


Aos 94 anos, Augusto de Campos anuncia que não escreverá mais poesia — e esse gesto, longe de marcar um fim melancólico, consagra sua última obra: o silêncio em forma de insubmissão. Não há rendição, apenas ruptura. Como sempre, ele nos obriga a repensar o que é poesia — e o que significa parar de escrevê-la.

“Não faço poesia para emocionar, faço para incomodar.”

Augusto de Campos


Há despedidas que se desenham como silêncio. Outras, como um sopro final. Mas a de Augusto de Campos não pertence a nenhuma dessas categorias. Aos 94 anos, ele anuncia a que não escreverá mais poesia — e esse gesto, longe de ser melancólico, é um novo ato poético. Uma recusa, uma borda de linguagem, um ponto que não encerra: expande.

O poema “Vertade” (2021), do livro “Pós Poemas”, de Augusto de Campos – Reprodução com adaptação

Ao longo de sete décadas, Augusto desafiou a própria ideia de poesia. Ao lado do irmão Haroldo e de Décio Pignatari, fundou a poesia concreta, revolucionando a página como espaço de invenção visual, sonora e semântica. Fez do verso um objeto, do silêncio uma pausa sonora, da palavra uma arquitetura. Mas seria simplista chamá-lo apenas de vanguardista. Augusto foi um criador de futuros — e um destruidor de passados confortáveis. Fez da sua obra um campo de tensões: entre o verbo e o pixel, o som e a imagem, o grito e a elegância gráfica.

A sua despedida da poesia não é um adeus à criação — é uma continuação do incômodo. Como se dissesse: “Não esperem de mim o crepúsculo romântico. Não esperem o aceno delicado. A poesia acabou porque não quero domesticá-la.” E há algo profundamente ético nisso. Num tempo em que tudo se converte em produto, até a rebeldia, Augusto preserva o gesto do corte como afirmação de liberdade.

O que fica não é apenas o legado concreto. Fica a postura. A inquietação como método. A recusa como poética. Em sua trajetória, Augusto foi mais que poeta — foi um artesão da desobediência estética. E talvez o maior serviço prestado à literatura brasileira tenha sido esse: provar que poesia não é forma de consolo, mas de luta. Não é abrigo, mas faísca.

Ao deixar a poesia, ele não a abandona. Apenas a empurra, mais uma vez, ao abismo necessário de sua reinvenção. E nos deixa uma pergunta que paira como um eco gráfico: quem, agora, terá coragem de continuar a incomodar?


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Comentários

3 comentários a “O poeta que se despede em chamas”

  1. Avatar de Daniel D’Olivier
    Daniel D’Olivier

    O Movimento Concretista em São Paulo encabeçado pelos Irmãos Campos, Décio entre outros e no Rio de Janeiro por Ferreira Gullar, Amílcar de Castro entre outros, trouxe para o público amante de poesia incríveis e estimulantes leituras. Fui assistir uma apresentação do Caetano Veloso no Canecão no Rio e algumas letras do novo álbum haviam sido compostas pelo Haroldo de Campos, pérolas geniais. Essa turma deixa um legado pra poesia brasileira GENIAL!!!!

  2. Avatar de Francisco França
    Francisco França

    Texto belíssimo e uma linda homenagem.
    Meus sinceros parabéns, fiquei emocionado.

  3. Avatar de MARIANA TELLES RODRIGUES PEREIRA
    MARIANA TELLES RODRIGUES PEREIRA

    Não encontra, no mundo de hoje, o terreno fértil para a “dialética da essência poética”.
    Em um tempo em que tudo é embalado, vendido e rotulado, Augusto resiste. E essa resistência é, sua forma mais fiel de continuar poeta.

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