A verdadeira manipulação do nosso tempo não está só na mentira, mas sobretudo na forma como se esconde a verdade evidente.
Enquanto milhões são perdidos em decisões políticas absurdas, como é o caso da TAP, citado no belíssimo editorial de Filipe Alves, — diretor do Diário de Notícias de Lisboa, o mais antigo diário de língua portuguesa ainda em publicação — o debate público é desviado para temas morais, identitários ou escandalosos que inflamam emoções e entorpecem a razão. Chama-se a isso cortina de fumo.
Mas o editorial — que denuncia corretamente os vieses cognitivos que toldam nosso juízo coletivo — não diz é que esse mesmo viés não é apenas uma falha humana: muitas vezes ele é induzido, explorado e cultivado.
“O maior inimigo do conhecimento não é a ignorância, é a ilusão do conhecimento.”
Daniel Boorstin
Não estamos apenas diante de uma população distraída, mas de uma indústria do desvio, uma engenharia de comunicação montada para canalizar a atenção pública para indignações fúteis ou polarizações fabricadas. O cérebro humano, sim, é imperfeito. Mas essa imperfeição é sistematicamente acionada — por algoritmos, manchetes, campanhas políticas — a serviço de uma máquina que lucra com a distração e governa pelo ruído.
Por que poucos viram — como o Filipe viu — os 21 mil milhões a escorrer pelos dedos do Estado? Porque estaríamos ocupados com “a invasão dos migrantes ilegais”, “os perigos do wokismo” ou “a corrupção moral das escolas”. A indignação existe — é real —, mas está mal dirigida. Não é à toa. O sistema atual precisa disso: um povo zangado, mas confuso; mobilizado, mas sem direção.
Quando denunciamos os efeitos dos vieses cognitivos mas sem nomear oa seus operadores conscientes, corremos o risco, e também contra mim falo, de ser cúmplices — mesmo que involuntários — de um processo mais fundo: a normalização da despolitização.
Podemos até estar a contribuir para a criação de uma ideia perigosa: que vivemos num tempo de desordem natural, como se o problema fosse a biologia do nosso cérebro e não a arquitetura política que o explora.
O que o nosso discurso esconde — e é aí que mora o perigo — é que existe um uso estratégico do erro humano por agentes que o compreendem profundamente. Empresas de publicidade, campanhas eleitorais, plataformas digitais, programas de governo: todos usam a ciência do comportamento para moldar opiniões, criar urgências falsas e apagar as verdadeiras.
Não é só o cérebro que erra. É o sistema que manipula o erro como método.
Denunciar os vieses cognitivos é apenas o primeiro passo. O segundo — certamente mais incômodo — seria expor quem os induz, quem os financia e quem deles se alimenta. E esse passo, quase sempre, fica por dar. Como se houvesse um acordo tácito entre o diagnóstico e a omissão.
A TAP foi só um caso. Mas há muitos outros: os fundos europeus desviados, as obras inúteis repetidas a cada ciclo eleitoral, as consultorias milionárias para decisões que nunca se cumprem. E o cidadão? Este continua a acreditar que a culpa é sempre dos outros. Dos “políticos corruptos”, dos “pobres que não querem trabalhar”, dos “imigrantes que sobrecarregam o sistema”. O truque funciona. Porque fomos ensinados a olhar para o lado errado.
Enquanto isso, o olhar certo continua proibido. Porque ele revelaria o operador do truque — e não apenas o truque em si.

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