O reencontro entre Reino Unido e União Europeia na área da defesa não é um gesto cerimonial de reconciliação, mas um ponto de inflexão na arquitetura de segurança global — e um prenúncio de uma nova era multipolar onde os blocos se reorganizam por afinidades estratégicas, não mais por alianças formais.
O pacto de defesa em construção entre Londres e Bruxelas, que permitirá às indústrias britânicas integrar projetos militares europeus, representa mais do que uma reaproximação pragmática entre partes que se distanciaram após o Brexit. Ele sinaliza o nascimento de uma “Europa defensiva aumentada”, em que a soberania nacional se curva, mais uma vez, diante da ameaça existencial que a guerra de Putin revelou.
Esse movimento é sintomático de um mundo que já deixou para trás a era do unipolarismo americano. Com os Estados Unidos absorvidos por sua própria fragmentação interna — e ameaçados por uma reedição do isolacionismo trumpista — a Europa percebeu que já não pode terceirizar sua segurança. O Reino Unido, por sua vez, reconhece que a insularidade pós-Brexit se tornou um luxo insustentável.
Este novo eixo Londres-Paris-Berlim, ancorado na capacidade de dissuasão e na produção conjunta de armamentos, projeta-se como o embrião de uma aliança flexível, mas eficaz, capaz de dialogar com a OTAN sem se submeter inteiramente a ela. É um modelo de “coalizão líquida”, adaptável aos desafios do século XXI — da guerra cibernética à proteção de infraestruturas críticas.
Neste mundo redesenhado, a Europa ensaia finalmente um passo em direção à maturidade estratégica.
Em termos globais, esse rearranjo pressiona outras potências a se posicionarem. A Rússia, confrontada com uma Europa rearmada e mais coesa, perderá espaço para exercer sua doutrina de desestabilização por zonas cinzentas. A China, por sua vez, observará com atenção o reforço do polo euro-atlântico — e poderá buscar intensificar seus laços com países do Sul Global, sobretudo no eixo BRICS, para contrabalançar.
Ao mesmo tempo, países como Índia, Brasil, África do Sul e Indonésia ganham margem para negociação estratégica, podendo extrair vantagens comerciais e diplomáticas ao se manterem como peças-chave em um xadrez onde ninguém mais detém o tabuleiro.
Estamos diante do esboço de um novo multilateralismo defensivo, em que alianças não precisam mais da liturgia de tratados permanentes, mas sim da convergência de interesses reais. A reentrada britânica é menos um retorno ao passado e mais uma adaptação ao presente: um presente em que os riscos são difusos, os inimigos não usam uniforme, e a defesa se tornou sinônimo de sobrevivência compartilhada.
Neste mundo redesenhado, a Europa ensaia finalmente um passo em direção à maturidade estratégica. E o Reino Unido, ao atravessar novamente o Canal da Mancha — não com soldados, mas com códigos de acesso — mostra que, em tempos de guerra híbrida, as pontes valem mais do que os muros.

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